Em 21
de maio de 1983, Ana Flávia e Marcelo chegam à família Gama Dias de Lima. Parentes
e amigos orgulhosos com o casal de gêmeos. Dois dias depois, a notícia de que
Marcelo nasceu com síndrome de Down, deficiência mental e intelectual. “Andaria tardiamente,
dificilmente falaria, aprendizagem reduzida, vida curta devido aos comprometimentos
cardíacos e digestivos”. Depois de 11 dias, o diagnóstico, de CIV (comunicação intraventricular
invertida): “Se não operar, ele não sobreviverá”.
Iniciou-se
a vida do nosso Marcelo. Em quatro meses, 11 pneumonias e a corrida para
operar: internações, quatro meses em São Paulo, cariologista, fisioterapias,
estimulação psicomotora, endócrino, psicólogo, natação, escotismo, medicação e
alimentação controladas. Nasce
o desafio da sobrevivência, buscar o possível nas limitações, que a
visão sobre a síndrome impõe: a exclusão social, a ignorância do que significa
uma pessoa na condição de deficiente e à margem dos recursos de inclusão e
cuidados especiais.
Nasce com Marcelo o amor de doação,
humildade e determinação. De repetir muitas vezes, do desafio na linguagem, na
coordenação psicomotora, nas cirurgias de alto risco, no sim das escolas e nos
adoecimentos recorrentes.
Assim
se desenvolve o Marcelo adulto, com os irmãos na universidade, o casamento do
irmão José, o nascimento do sobrinho Chicco e a irmã se mudando para trabalhar.
Marcelo se encolhe, a depressão se instala e todo o processo de aprendizado é
comprometido. Ele não sonha, não sorri, não fala mais, se isola no seu mundo e
nada mais acontece. Adormece o desejo de estudar e trabalhar no McDonald’s. Não
entende o porquê não ter os mesmos
direitos dos demais.
Nova
luta se inicia: psiquiatra, psicólogo, apneia do sono severa, arritmia e
movimentos autistas. O incentivo dos profissionais e da família venceu o estado
de letargia. Nasce o
Marcelo superação, com a oportunidade de fazer um curso no Senac.
Aceitou o treinamento na Câmara dos Deputados e no Senado e aprendeu a tarefa
de garçom.
Em
três meses, o curso se encerrou, a expressão “Eu sou feliz, sou útil”
desapareceu. Marcelo regrediu, a depressão bateu forte. Finalmente, surgiu a
oportunidade de trabalho, a chance de recuperar a vitalidade. Nasce a concretização de um
sonho com a aceitação dele como funcionário do McDonald’s. Contrato de
trabalho, documentação, conta bancária reavivaram sua emoção com a impressão
digital no seu cartão de crédito. Abraçou-me com tanta alegria, senti seus
batimentos cardíacos se confundindo com os meus. Agora, pertencia a um grupo
parceiro de trabalho.
O
primeiro salário, o orgulho de comprar com seu dinheiro, usando o cartão com a
ajuda do adulto. Para Marcelo, não importa a marca do tênis, mas a confirmação
de que é respeitado nas suas limitações. Não importa se suas tarefas sejam
pouco para os outros, não cabe julgamento dentro do seu esforço para ser gente
na grandeza da sua alma. Tudo isso significa poder construir a sua identidade
social no trabalho e preservar a dignidade individual.
O trabalho trouxe a dimensão de sentido,
que representa a vida com dignidade, que
todos os seres merecem. Como é maravilhoso ver Marcelo expressando
leveza. O trabalho o enobrece, redimensionando o seu mundo emocional do “trabalhador
Marcelo”.
Nasce a estrela Marcelo.
Comemorar, no local de trabalho, os 36 anos ficará gravado em nossa memória,
somando-se ao carinho de todos funcionários, familiares e amigos. Marcelo
aprendendo, dentro das limitações, a sua dimensão de sentido da vida e de
pertencimento que representaram a introjeção de valores apreendidos nas
relações familiares experiências vividas. Aprendeu a ouvir, a tocar, a pensar,
a desejar, a imitar e a amar e se sentir amado pela família e amigos.
No
mundo subjetivo, está sobrevivendo, sendo diferenciado dos outros, superando a alienação,
a retórica vazia do mundo objetivo. Marcelo é diferente. É dependente e pode
contribuir “pequeno”, mas com grande intensidade nos valores que consegue
agregar por onde passa. Marcelo é especial. O trabalho o está engrandecendo e
resgatando a sua alegria.
Publicado
no Correio Braziliense do dia 10 de junho de 2019, coluna Opinião, p.11
COMENTO
Entre tantas tragédias e crueldades publicadas nos jornais, surpreendeu-me esse lindo texto no CB. Emociona a leitura não só pela superação do "personagem", real, Marcelo, mas pelo espírito de cooperação e colaboração que conseguiu encontrar para se superar. É possível "concretizar sonhos", sim, apesar dos óbices que se interpõem em nossos caminhos. Marcelo mostrou que é possível. O sonho dele era da dimensão de suas limitações, ser útil. Por fim, a relação de uma realização pessoal se deu com o emprego, "O trabalho trouxe a dimensão de sentido, que representa a vida com dignidade, que todos os seres merece". Essa dignidade que hoje falta a mais de 12 milhões de desempregados no país. Que a história de Marcelo seja uma referência para outras famílias que tenham parentes na mesma condição. que a história de Marcelo seja-nos um instigador de humanização.
Roner S Gama