As plataformas digitais têm permitido que os cidadãos busquem fontes de maior consonância com as suas opiniões, caso do efeito bolha ideológica.
Imagine que você more num condomínio em que não é mais possível punir ou expulsar aquele vizinho que gosta de fazer barulho em horários impróprios. Pior. Ele não se intimida com os pedidos e reclamações e, em algumas situações, consegue até arregimentar mais gente, dando maior escala aos ruídos que tanto incomodam o condomínio. Pode parecer estranha, mas essa imagem ajuda a ilustrar uma característica da formação da opinião pública no atual contexto. As fases de silenciamento se tornaram mais escassas, e há poucas chances de que pensamentos considerados até então destoantes não sejam vistos e compartilhados. Estamos na fase do barulho permanente.
Proposta
na década de 70 do século passado pela cientista Elisabeth Noelle-Neumann, a Teoria da Espiral do Silêncio
defende que discursos ou visões destoantes tendiam a perder espaço na opinião
pública, em razão de uma característica da vida em sociedade. Queremos evitar o
isolamento social ou psicológico e, dessa maneira, “monitoramos” o clima de opinião
predominante nos veículos de comunicação
para inferir que ideias são mais aceitas. Se identificamos que temos
posição aparentemente divergente da “maioria”, tendemos a mudar de opinião ou a
nos silenciarmos.
Para
Noelle, os meios de comunicação jogam papel relevante na produção de certo
clima de opinião por duas razões: estabelecem consonância (similaridade entre
os veículos na escolha dos temas e percepções sobre os temas) e acumulação (frequência
dos temas e percepções). No momento em que desenvolveu a Teoria da Espiral do
Silêncio, Noelle tinha um ambiente de comunicação em que o jornal impresso, o
rádio e, em menor grau, a televisão predominavam.
No
ambiente da comunicação contemporânea, mudanças significativas nos provocam a
repensar a tese do silenciamento. A proliferação de fontes de informação
reduziu o efeito da consonância. Embora ela possa continuar existindo entre
veículos e marcas tradicionais, há uma infinidade de fontes e opiniões divergentes
no ambiente digital. As plataformas digitais têm permitido que os cidadãos
busquem fontes de maior consonância com as suas opiniões, caso do efeito bolha
ideológica. Adicione mais uma característica. No atual contexto, os indivíduos
têm meios e são encorajados a expressar suas opiniões (anonimato, likes,
compartilhamentos etc.), limitando os efeitos do silenciamento das ideias e
opiniões políticas. Não é preciso mais silenciar-se, basta encontrar o próprio
grupo e permanecer ativos nas redes.
Essas
características sugerem como a noção de clima de opinião, a percepção média dos temas, é
hoje mais complexa e de difícil apreensão. Talvez fosse necessário falar de
climas de opiniões. Os grupos que buscavam adaptar suas ideias (mudando de
opinião ou silenciando) podem
hoje manter suas atitudes, localizar seus iguais e evitar a percepção de que
estão isolados. Nesse contexto, há menos chance de silenciamento.
Se
esse ambiente oferece um ganho do ponto de vista democrático , na medida em que permite que
novas vozes possam fazer parte do debate público, denunciando racismo,
homofobia etc., por outro lado traz o risco de permanência de discursos
radicais e, o que é pior, de que esses grupos conquistem adeptos, mobilizando
contingentes a favor de agendas que afrontam a própria democracia. Esse é um
desafio para países como o Brasil, em que grupos numericamente minoritários
perceberam que podem conquistar ou manter apoio pela via da radicalização e da
intolerância.
Fábio Vasconcellos é cientista político, jornalista e
professor da ESPM-RJ e Uerj.
Texto publicado no jornal O Globo de 4 de janeiro de 2022;