*Fábio Medina Osório. Advogado, foi ministro da AGU
O due processo of Law tem origem mais
conhecida na Magna Carta inglesa de 1215, exatamente na garantia de proteção à
liberdade e à propriedade do ser humano, com duas exigências fundamentais: a
sentença legítima dos pares e a lei do lugar. É claro que se trata de um
conjunto de normas imanentes ao modelo Common
Law, no curso da Idade Média, que contribuíram para a formação do Estado
Moderno. A expressão due processo of Law
aparece mais precisamente em 1344, quando o Parlamento inglês força o rei
Eduardo III a aceitar uma lei desenhada para frear os próprios excessos.
Através de Coke e Blackstone, o princípio do devido processo legal chegou ao
direito norte-americano no momento da Revolução, embasando nova ordem
normativa, ainda que seu desenvolvimento só viesse a ocorrer mais tarde. É um
princípio que está expresso na Constituição brasileira de 1988, com origens
históricas mais remotas.
O
STF define muito claramente que os processos administrativos sancionadores,
punitivos ou não, obedecem aos pilares do devido processo legal formal
substancial. Há processos administrativos restritivos de direitos que não
ostentam caráter punitivo. Existem
processos judiciais e administrativos. Investigações também se submetem ao
devido processo legal administrativo. E mesmo atos meramente apuratórios,
preliminares a qualquer investigação. Por devido processo legal substancial
deve-se compreender o princípio de interdição à arbitrariedade dos Poderem
públicos. Nessa categoria, que é comum às famílias jurídicas da common law e da civil law, englobam-se direitos implícitos na Constituição e nas
leis, que podem ser reconhecidos pela jurisprudência judicial ou
administrativa.
Na
Espanha, a vedação à arbitrariedade está explícita na Constituição, e ali foi
posta pelo então senador Lorenzo Martin Retortillo Baquer, sob inspiração de
Eduardo García de Enterría. No Brasil, o STF tem sido o construtor do aludido
princípio de vedação à arbitrariedade, extraindo-o do devido processo legal
substancial. A proibição de atos arbitrários, endereçada aos Poderes públicos,
é um direito fundamental das pessoas e se desdobra em múltiplas direções. Um
ser humano não pode submeter-se ao capricho de outro, já dizia Roscoe Pound,
valorizando o devido processo legal.
O
devido processo legal formal, por seu turno, abarca os direitos de defesa, na
sua plenitude, com os meios e recursos inerentes, além do contraditório. Tais
direitos contemplam direitos de manifestação nos processos, paridade de armas,
direito de ser ouvido. Em recente decisão, no caso Deltan (Pet. 9.068 MC/DF), o
ministro Celso de Mello disse que “o exame da garantia constitucional do due processo of law permite nela
identificar, em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à própria
configuração, entre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as
seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder
Judiciário; (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação
; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d)
direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à
defesa técnica); (e) direito de não se processado e julgado com base em leis ex post facto; (f) direito à igualdade
ente as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas
revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à
observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio
contra a autoincriminação); e (l) direito à prova (...)”
O
direito ao devido processo legal, na esfera administrativa, impõe que aos
investigados se lhes assegurem direitos relacionados à delimitação do objeto da
investigação, que deve recair sobre fato típico e ilícito em tese, vedando-se arbitrariedade
do investigador. É dizer, não pode o investigador instaurar procedimento
apuratório administrativo ou criminal sem fato típico e ilícito no centro
gravitacional, fato esse devidamente narrado e delimitado. Fatos incertos e indeterminados,
ou atípicos, não servem para embasar instaurações de cadernos investigatórios,
sob pena de se instaurar o reino do arbítrio. Da mesma forma, o direito de não
ser investigado ou processado sem justa causa ou por fatos atípicos é
decorrência do direito ao devido processo legal substancial. Investigações
secretas e arbitrárias ocorriam em tempos obscuros incompatíveis com as luzes
de um regime democrático. Atos abusivos e arbitrários geram direitos à
reparação de danos.
Não
por outra razão, a Lei nº 13.869/19 estabelece ser crime de abuso de
autoridade, no art. 27, requisitar instauração
ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa,
em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício de prática de crime, de
ilícito funcional ou de infração administrativa, apenando com seis meses a dois
anos de detenção essa conduta. A ressalva do parágrafo único diz respeito à
força de indícios que, para as infrações administrativas afetas a sindicâncias
e investigações preliminares, poderão ter um padrão inferior de prova. Em qualquer
caso, é vedado instaurar investigações, sindicâncias ou procedimentos
preliminares por fatos atípicos ou sem justa causa.
De
igual modo, a lei veda a persecução penal, civil ou administrativa arbitrária,
que também é crime previsto no art. 30. Igualmente é crime (art.33) exigir
informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não
fazer, sem expresso amparo legal. Tais ilícitos de abuso de autoridade mostram
o repúdio ao arbítrio do agente público fiscalizador. Mais ainda, revelam o
respeito ao devido processo legal que de deve cultivar em relação ao
administrado e jurisdicionado.
Publicado no Correio
Braziliense, de 9 de setembro de 2020, Caderno Opinião, p. 11